sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Lei

Não muito longe daqui, numas terras mais ao Sul (ou ao Norte, ninguém sabe ao certo), existe um país bem pequenininho, insignificante mesmo, que vive de inventar leis. Todos os dias seus prudentes habitantes reúnem-se em assembléias muito bem ordenadas e passam horas a fio buscando em sua interminável legislação qualquer falha que permita às pessoas agir de forma contrária aos preceitos sociais vigentes.


A Lei, como é chamada, diz que cada um deve contribuir com uma nova regra a cada dois dias e um terço, sendo que aquele que não der sua contribuição ficará privado de comer sorvete de chocolate por seis meses. Quem desobedece a regra e come sorvete de chocolate – o que acontece com freqüência, visto que sorvete de chocolate é um alimento muito popular naquele país – é automaticamente condenado a comer sopa de enguias por três meses no jantar. Sopa de enguias, como você bem deve imaginar, é a comida mais odiada pelos cidadãos locais, com exceção do velhinho dono da Farmácia Central, que freqüentemente quebra todas as regras só para saborear o estranho prato.

A qualidade mais apreciada nesse país tão exótico é a capacidade de memorização. Desde pequenos, seus habitantes são ensinados a decorar parágrafos imensos dos mais diversos textos. Tal habilidade mostra-se extremamente útil quando os jovens alcançam a maioridade e podem ser, enfim, penalizados por não cumprirem a Lei.

Além da memorização, a segunda disciplina ensinada nas escolas é - como não poderia deixar de ser - a Lei. De tão comprida e complexa, a Lei é ensinada aos habitantes desde a mais tenra idade, deixando pouco ou nenhum espaço para matérias como biologia, física, química, história ou matemática. O que não faz muita diferença para os cidadãos, afinal, tudo o que se pode ou não fazer no decorrer de uma vida é amplamente descrito em todas as infinitas regras da Lei. Há, por exemplo, artigos que determinam o dia e horário em que uma pessoa pode viajar para fora do país, de acordo com a primeira letra de seu nome. Alguns dizem que esta regra é totalmente desnecessária, visto que os cidadãos evitam viagens longas com medo de não conseguirem contribuir com novas regras e serem privados de seu tão adorado sorvete de chocolate.

Entre as profissões mais disputadas nesse país estão a de advogado, juiz e policial. Os dados estatísticos apurados no último censo demonstram que 35% da população é composta de advogados, 10% de juízes e 21,57% de policiais. O restante se divide em donos de pequenos estabelecimentos, professores de memorização e Lei, funcionários públicos, políticos e três cientistas.

Os cientistas formam a parcela mais incompreendida da população. De fato, quase ninguém quer ser cientista, pois é muito difícil pensar em descobrir coisas novas quando há tantas regras para serem seguidas. Diz-se, além disso, que dois dos cientistas são estrangeiros e entraram ilegalmente no país, enquanto o terceiro é filho ilegítimo de um padre do interior. Mas, como até hoje ninguém conseguiu provar patavinas, eles seguem fazendo suas pesquisas sob o olhar atento dos desconfiados cidadãos.

Um fenômeno que vem sendo alvo de intenso estudo dos cientistas atualmente é o crescente número de furtos, assaltos, assassinatos e acidentes automobilísticos no país, além de outras pequenas contravenções, como o lixo espalhado pelas ruas, a pichação de prédios e a eleição de políticos condenados pela justiça. A pesquisa ainda deve avançar por muito tempo, visto os poucos recursos destinados à ciência naquela região, mas os dados levantados até o momento já permitem um pequeno vislumbre das causas de tantas infrações.

Ao que parece, tal mudança é devida à baixa capacidade dos cidadãos de interpretar as leis. Uma tese sustentada por um dos cientistas é de que a supressão de disciplinas que incentivam o pensamento crítico nas escolas está, aos poucos, formando adultos que desconhecem o significado das palavras contidas na Lei. Assim, sem conseguir interpretá-la corretamente, os cidadãos acabam fazendo o que bem entendem – e, como nada entendem, juízes, advogados e policiais também julgam ou prendem aquele que lhes der na telha.

Atualmente, o cientista que elaborou esta tese encontra-se preso enquanto uma assembléia extraordinária reúne-se para decidir sua pena: o Sindicato dos Professores de Memorização e Lei abriu um processo contra ele por calúnia e difamação. Não se sabe ainda o que será feito do homem, visto que os jurados estão tendo alguns problemas para definir o real significado da palavra calúnia e qual a extensão do dano que pode causar. Mas, por via das dúvidas, um grupo de leais cidadãos reuniu-se na Praça Central onde montou uma fogueira pronta para ser acesa, para o caso do cientista escapar. Especula-se que ele tenha estreitas ligações com seitas demoníacas e esteja tentando trazer o caos para os habitantes do país. Há boatos de que ele promova a queima, às escondidas, de volumes inteiros da Lei. Mas são apenas boatos.

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