segunda-feira, 21 de março de 2011

Linguagem, pensamento, arte e a Maria Bethânia

Como amante confessa do estudo de idiomas, vivo, desde muito cedo, de mãos dadas com a língua portuguesa, enquanto mantenho um namoro sério com o inglês e um flerte irrecuperável com o espanhol. Recentemente, o francês tem sido alvo de minhas investidas, embora a aproximação esteja levando lá o seu tempo (a arrogância aparente impede uma aproximação direta, creio eu). 
Pessoas como eu, que cultivam histórias de namoros, rompimentos e recomeços no eterno processo de aprender novas línguas, percebem, depois de algum tempo, que o grande segredo não é a decoreba. Decorar palavras e expressões só funciona quando se está começando - você até consegue pegar na mão, dar beijo na bochecha, mas tudo termina por aí. Se quiser seguir adiante, manter um compromisso sério com o novo idioma, tem que aprender a pensar na nova língua.  
E, quando a gente finalmente consegue fazer esse exercício maluco de desligar o português, se prestar bastante atenção vai descobrir uma mudança bastante sutil e interessante em nossa forma de expressar o mundo. Como tudo fica mais intenso se usamos o espanhol, mais requintado com o francês ou ainda mais direto com o inglês. Até aquela maldita inversão da ordem das palavras quando falamos inglês acarreta mudanças em nossa postura. Estranho, quase imperceptível, mas já virou ciência. 
Uma reportagem muito interessante publicada na Scientific American deste mês diz que 
“Ao redor do mundo, as pessoas se comunicam usando uma deslumbrante variedade de idiomas - mais ou menos 7 mil ao todo - e cada um deles exige condições muito diferentes de seus falantes.”*
Os falantes de kuuk thaayorre (estranho, muito estranho) - idioma falado em Pormpuraaw, pequena comunidade aborígene do norte da Austrália - não usam termos relativos ao espaço como esquerda e direita. Ao invés disso, conversam em termos de pontos cardeais absolutos (norte, sul, leste, oeste). Assim, nesta língua, os pontos cardeais são usados em qualquer escala - eles não dizem, por exemplo, “o garfo está à esquerda do prato”, mas usam frases como “o garfo está à leste do prato”.  Em consequência, isso exige de um habitante de Pormpuraaw que esteja sempre orientado, apenas para conseguir se comunicar. Ou seja, em qualquer lugar do mundo que um falante desta língua estiver, ele saberá apontar com extrema facilidade a direção dos pontos cardeais. Não sei vocês, mas eu demoro até para distinguir a esquerda da direita. 
Percebem a mudança que um simples idioma faz em uma pessoa? A reportagem diz ainda que “As estruturas dos idiomas podem facilitar ou dificultar o nosso aprendizado de coisas novas. Por exemplo, pelo fato de as palavras correspondentes a números em alguns idiomas revelarem a base decimal implícita mais claramente (...) as crianças que aprendem essas línguas são capazes de interiorizar mais rapidamente a base decimal. E, dependendo de quantas sílabas as palavras relativas a números têm, será mais fácil ou mais difícil memorizar um número de telefone ou fazer cálculo mental.”* Fascinante. Talvez isso explique aquela fila de japoneses craques em matemática que me davam pesadelos na época do vestibular. 
E, se a língua é um reflexo da cultura, ou a cultura um reflexo da língua (ovo ou galinha?), o que falar da arte? “Arte é cultura.”** Vejam nos asteriscos que as palavras não saíram do meu teclado. E replico mais: “É fruto de sujeitos que expressam sua visão de mundo, visão esta que está atrelada a concepções, princípios, espaços, tempos, vivências.” Faz todo sentido. 
Daí vem aquela discussão do blog da Maria Bethânia, e eu que adoro dar pano pra manga tinha que dar minha opinião, claro. Poesia nunca é demais, muito pelo contrário. Se uma artista do porte dela precisa do dinheiro? Acredito que não, mas ter uma artista do porte dela declamando poesias diariamente, em um blog que qualquer um com acesso à internet pode acessar, tem preço? O assunto é polêmico, mas não é nele que quero chegar. 
Acontece que, no meio da discussão, tive que ler coisas como “o governo não deveria investir em arte - temos problemas maiores, como segurança, saúde e educação”. Isso sim, me incomodou profundamente. Desde quando arte não é educação? Essa não dava para deixar passar. Então, respiro fundo, e termino com palavras que não são minhas, mas de gente com muito bom senso. O contato com a arte de diversos períodos históricos e de outros lugares e regiões amplia a visão de mundo, enriquece o repertório estético, favorece a criação de vínculos com realidades diversas e assim propicia uma cultura de tolerância, de valorização da diversidade, de respeito mútuo, podendo contribuir para uma cultura de paz.”**

*Fonte: “Como a Linguagem Modela o Pensamento”, Lera Boroditsky, Scientific American, março 2011, páginas 62 e 63.
**Fonte: “Arte-Educação para quê?”, Selma Moura, abril de 2008, www.overmundo.com.br 

sábado, 12 de março de 2011

Veneza Reinventada

Eis que a cidade virou água
Entre rios de lama
Uma Veneza reinventada
Brota de cachoeiras súbitas
Corram, fujam!
Nadem feito ratos enquanto o mundo se dissolve em lixo!
É disso que somos feitos agora
É para lá que voltaremos
De enxurrada em enxurrada

quarta-feira, 9 de março de 2011

Nas quartas-feiras de cinzas

Escrevo só por sentir falta
de ter o que escrever
É que a quarta-feira perdida
em seu mundo de cinzas
implora um papel 
mesmo que roto
Escrevo este poema imperfeito
Cheio de clichês reciclados
De poetas muitos
Sem purpurinas, plumas ou paetês
Escrevo para que as horas em mim existam
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