“A religião convenceu mesmo as pessoas de que existe um homem invisível - que mora no céu - que observa tudo o que você faz, a cada minuto de cada dia. E o homem invisível tem uma lista especial com dez coisas que ele não quer que você faça. E, se você fizer alguma dessas dez coisas, ele tem um lugar especial, cheio de fogo e fumaça, e de tortura e angústia, para onde vai mandá-lo, para que você sofra e queime e sufoque e grite e chore para todo o sempre, até o fim dos tempos... Mas Ele ama você!”
(George Carlin - retirado do livro “Deus, um Delírio”, citação que inicia o capítulo 8.)
Um dos primeiros livros que ganhei na vida, antes mesmo de aprender a ler (meus pais tinham o bom hábito da leitura e trataram logo de me familiarizar com a experiência), chamava-se “O Velho Testamento para Crianças”. De capa dura, letras grandes e desenhos em traço, passei algum tempo folheando-o antes de ter o conhecimento necessário para desvendá-lo por completo. Naquele tempo* a gente só aprendia a ler de verdade na primeira série. Até lá, o máximo que tínhamos era o a, e, i, o, u e um repeteco eterno de nossos nomes.
Para a alegria da minha mãe, que se livrou da tarefa de escrever os nomes dos Menudos nos corações de papel que eu recortava (todo mundo tem um podre – o meu ao menos vem acompanhado da desculpa de ser pequena demais para ter senso crítico), aprendi a ler com relativa facilidade e pude, lá pelos idos de meus sete anos, iniciar sozinha a leitura do Velho Testamento (para crianças, notem bem).
Era um livro assustador. Quase tão perverso quanto a história que a professora contou para minha turma antes da “hora do soninho” no jardim de infância. Tínhamos quatro anos e observávamos aterrorizados a maquete de coração ser substituída por sua versão em preto, enquanto as pobres criancinhas pecadoras eram jogadas no inferno porque haviam mentido. Segundo a professora, nossas mentiras e outros pecados aparentemente sem importância faziam com que o coração fosse ficando negro aos poucos. E, depois de algum tempo, quando ele estivesse completamente negro, iríamos para o inferno. Acolhedor, não? Sem falar no teor racista implícito. Lembro até hoje do pesadelo que tive após essa aula “esclarecedora”. Minha mãe e seu bom senso me tiraram daquela escola depois disso, mas eles não foram suficientes para entender, no início da década de 80, o quão maléficas pareceriam as histórias do Velho Testamento para a imaginação infantil.
Nunca entendi como Deus pôde pedir a Abraão para sacrificar seu próprio filho – mesmo que no final tenha mudado de ideia. E Jó, o que dizer do pobre Jó? Sem falar na incoerência da história de Adão e Eva - que não tem muito a ver com terror, mas com lógica: se só haviam eles de humanos no mundo, com quem seus filhos casaram depois que saíram do paraíso? Mesmo que você seja um fiel seguidor da Bíblia, duvido que nunca tenha feito a pergunta.
Tudo isso para dizer que finalmente terminei a leitura de “Deus, um delírio”. Já expliquei porque resolvi iniciar essa leitura num post aqui e não vou me repetir, mas, se você tem alguma dúvida, basta ler a citação que reproduzi no primeiro parágrafo para ter um vislumbre dos meus porquês.
Devo confessar que estou há umas três semanas relutando em publicar este post. Falar de Deus é muita responsabilidade, questioná-lo, então, um perigo. Para a alma, se Ele existir e for vingativo como diz o Velho Testamento, e para o corpo, se algum crente radical decidir tomar as dores. Como meu bom senso não é lá essas coisas, decidi seguir em frente.
Para começar, devo dizer que o livro é bem convincente. Por exemplo, quando faz a intrigante pergunta “quem criou o Criador?”. A teoria do design inteligente diz que criaturas tão complexas como seres humanos, macacos ou zebras não poderiam ser o simples fruto da evolução. Só um Ser Superior poderia projetar todo esse emaranhado de vida tão interdependente quanto diverso. Mas, se só um Ser Superior poderia criar todas essas complexidades, é inevitável pensar que algo ainda mais superior precisou um dia existir e criar o Ser Superior. Afinal, se somos frutos de um design inteligente, como surgiu o Grande Projetista?
Percebe o quão interminável é o raciocínio? “Eis o mistério da fé.”
Não desejo converter ninguém, apenas colocar as mentes para trabalhar. Continuando, Dawkins aborda muito bem o tema da religião e quão prejudicial ela (ou elas) tem sido para a humanidade. Se não concorda, perca um pouco de tempo para investigar o assunto (mas com imparcialidade). A guerra eterna entre judeus e muçulmanos no Oriente Médio e mesmo o 11 de setembro, para mim, já são exemplos suficientes.
Há algum tempo abri mão da minha (religião), embora volta e meia seja levada a missas e cultos, os quais frequento mais por acreditar na energia de tanta gente reunida que nas palavras dos sacerdotes. Alguém pode argumentar que essa crença em “energia” também não faz o menor sentido. A resposta é que não consigo ser 100% racional.
Outra pergunta que não quer calar é por que Cristo precisou morrer na cruz para expiar nossos pecados? Quer dizer, se Deus é amor (usando agora a lógica em voga nas religiões modernas), Ele não poderia simplesmente nos perdoar? De onde vem toda essa necessidade de dor e sofrimento? Adoro a filosofia por trás de Jesus Cristo, adoro quando ele reparte o pão, cura os doentes e põe mulheres e crianças em nível de igualdade com os homens, mas nem eu nem o autor do polêmico livro comentado aqui entendemos o motivo da crucificação. Se você tem bons argumentos a favor dela, não hesite em deixar um comentário.
Ainda não virei uma atéia convicta e talvez nunca o faça. Parte da explicação está na impossibilidade de ser 100% racional. A outra tiro de um trecho do “Deus, um delírio”: “Vivemos perto do centro de um museu de magnitudes cavernosas, enxergando o mundo com órgãos dos sentidos e sistemas nervosos equipados para perceber e entender apenas uma pequena variação mediana de tamanhos, que se movam numa variação mediana de velocidades. (...) Fora dessa gama, até nossa imaginação é deficiente (...)”. Não entenda mal: Dawkins usa essas palavras para justificar a necessidade da ciência em nossas vidas, na medida em que nos fornece continuamente instrumentos para que aumentemos nossa área de visão.
Mas, com toda sua fé na ciência, ele esquece o quão incompreensível alguns fatos podem ser para nós humanos – pelo simples fato de sermos humanos. Talvez nossa lógica seja apenas limitada demais para entender a existência de uma Divindade.
Então, caro leitor, com olhos atentos e coração carente de algo que a evolução pode explicar mas a mente não quer entender, reservo-me o luxo de permanecer em cima do muro, a favor da ciência e do conhecimento, mas também de um Deus que dê à minha e à sua vida um significado maior. Mas sem religiões, por favor.
*”Naquele tempo”, “no meu tempo”... usar expressões como estas me faz sentir o cheiro da naftalina se aproximando. Mas, como o que não tem remédio, remediado está, sigamos em frente.